Ainda Estou Aqui: A Ditadura na Tela e as Ditaduras de Nossos Corpos
Eunice, Pethyne, Jupitter e Como um filme pode gerar empatia, mas a realidade ainda é ignorada?
O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, nos transporta para os anos de chumbo da Ditadura Militar brasileira, narrando a história de Eunice (Fernanda Torres), uma mulher de classe média branca que, diante do desaparecimento de seu marido, transita de dona de casa para ativista de direitos humanos. A trama expõe a brutalidade do regime e a luta de uma mãe e esposa por justiça, buscando sensibilizar o público sobre as feridas históricas do país.
O que torna essa obra marcante não é apenas sua ambientação, mas a forma como ela captura a transição de Eunice para um estado de resistência — um processo que exige dela a renúncia de privilégios e a vivência da violência política e emocional. Contudo, a comoção gerada pela ficção muitas vezes contrasta com a indiferença diante das violências reais enfrentadas por corpos dissidentes na contemporaneidade.
Enquanto o público é impactado pelo drama de Eunice e de sua família, a brutalidade vivida por pessoas trans e travestis no Brasil segue naturalizada. É inevitável traçar um paralelo entre a repressão estatal da Ditadura Militar e as violências estruturais que hoje recaem sobre os corpos dissidentes.
No caso de Campinas, uma travesti foi não apenas assassinada, mas também teve o coração arrancado por seu algoz, movido pelo medo de que sua relação com ela fosse exposta. Esse crime, embora brutal, é apenas um entre tantos que configuram o Brasil como o país que mais mata pessoas trans no mundo.
A experiência de Eunice no filme, de uma vida marcada por perdas, censura e silenciamento, é semelhante àquela que corpos trans enfrentam diariamente — mas, no caso destes, não há uma comoção pública proporcional. Os desaparecimentos, as exclusões e as violências contra pessoas trans são banalizados, e a sociedade sequer reconhece essas vidas como dignas de luto ou memória.
Friedrich Nietzsche, em sua filosofia, nos oferece conceitos que ajudam a interpretar essas violências. A ideia de ressentimento reflete como estruturas sociais e morais se perpetuam, projetando o ódio e a culpa sobre aqueles que desviam da norma. O conceito de Eterno Retorno evidencia como essas opressões e violências se repetem ciclicamente ao longo da história, enquanto a moral do senhor e do escravo nos permite pensar nas dinâmicas de poder que sustentam a marginalização de corpos dissidentes.
Assim como Eunice foi forçada a reconstruir sua vida sob o peso de uma ditadura que a violentava, pessoas trans enfrentam, diariamente, uma série de ditaduras sociais que regulam seus corpos, suas identidades e sua existência. Essa repetição histórica só será interrompida quando essas estruturas de poder forem desafiadas e ressignificadas.
Eu assistindo ao filme me peguei pensando sobre mim e a força dos meus principalmente os que fazem ARTE, Júpiter Pimentel que eu posso dizer que para além de ser MC fazer musica com as nossas vidas trazendo reconhecimento nas suas letras sobre as nossas vidas e Pethyne Noir cantora faz Rap, Trap, Pop e dança são exemplos vivos de como pessoas Trans e Travestis, ressignificam as violências impostas pela sociedade Jupitter carrega com orgulho definição BOYCETA a identidade trans masculina não binaria algo importante o significado é a liberdade do seu próprio corpo . Suas produções artísticas são atos de resistência, espaços onde corpos dissidentes não apenas sobrevivem, mas reivindicam sua existência e potência criativa.
A violência contra corpos trans, travestis e dissidentes de gênero hoje é uma sentença imposta à existência. Não é apenas a agressão física ou o assassinato brutal que nos afeta, mas a contínua negação de nossa humanidade em todos os espaços. Essa negação se traduz na exclusão de nossas vidas das narrativas que a sociedade escolhe valorizar.
Enquanto o filme Ainda Estou Aqui provoca comoção ao retratar uma família que sofre durante a Ditadura Militar, o público se identifica com Eunice, seu marido ou seu filho, porque essas histórias poderiam ser as suas. No entanto, essas mesmas pessoas não enxergam as famílias que construímos, os afetos que cultivamos ou a nossa própria humanidade. Para elas, nossa dor não é comparável, porque não somos vistas como parte da composição familiar que merece empatia ou luto.
E, assim, a violência que nos atravessa — seja o apagamento, o preconceito ou os assassinatos brutais, como o caso da travesti em Campinas — não desperta nelas o mesmo impacto. Vivemos sob uma sentença que nos obriga a lutar diariamente por sobrevivência. Pethyne Noir e Júpitter Pimentel simbolizam essa resistência com suas trajetórias. Pethyne, mulher transexual travesti negra, transforma sua existência em luta: é cantora, dançarina, ativista e cria música que une raça, gênero e classe em uma perspectiva feminista única. Júpiter, MC, poeta e estudante, reconstrói seu corpo e sua consciência, ressignificando sua experiência para educar e inspirar. Ambos resistem não apenas sobrevivendo, mas criando, desafiando a violência que tenta apagá-los.
Essa luta é um espelho incômodo que a sociedade evita. Afinal, aceitar nossa humanidade exige confrontar o fato de que as estruturas que garantem a segurança de uns são as mesmas que nos desumanizam. E é por isso que o impacto do filme não se estende ao reconhecimento da violência contra nós. Essa é a mensagem final: é impossível falar de resistência sem incluir corpos trans, travestis e dissidentes. Nossa luta não é apenas nossa. Ela reflete a luta pelo reconhecimento de todas as vidas como igualmente dignas.
No diálogo entre o filme e as narrativas desses artistas, emergem semelhanças que transcendem o tempo e o espaço: tanto Eunice quanto corpos trans carregam em si a marca da resistência e a coragem de lutar contra as forças que buscam apagá-los.
No entanto, enquanto Eunice encontra espaço para sua dor na ficção e no reconhecimento do público, corpos dissidentes são muitas vezes relegados ao silêncio.
A proposta de Ainda Estou Aqui é impactar o público ao retratar a dor de uma família que teve sua humanidade violada pela ditadura.
Mas qual é o impacto real dessa história se o público, ao sair da sala de cinema, continua ignorando as ditaduras contemporâneas impostas a corpos trans e travestis?
Assim como Eunice, nós resistimos. Mas, diferentemente da ficção, não temos o luxo de esperar pela redenção.
A luta por justiça e visibilidade precisa acontecer agora, enquanto ainda estamos aqui. É necessário que o público reflita sobre sua responsabilidade em perpetuar ou transformar essas violências e entenda que o reconhecimento da humanidade de corpos dissidentes é um passo fundamental para uma sociedade mais justa e igualitária.
A resistência, seja nos anos de chumbo ou na contemporaneidade, exige coragem. E, enquanto houver corpos dissidentes vivos, haverá luta.